Embora
abolida oficialmente, a escravidão no Brasil ainda resiste de forma
clandestina (e, às vezes, nem tão clandestina assim). Parte
significativa da sociedade civil cansou de esperar pela boa vontade dos
parlamentares e, com razão, pressiona-os para que aprovem
definitivamente a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438, que
determina a expropriação das terras onde for flagrado trabalho escravo.
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Esta
PEC já foi aprovada no Senado e, em primeiro turno, na Câmara. Mas,
para ser totalmente aprovada e, assim, alterar a Constituição, ela
precisa ser votada em segundo turno – algo que a bancada de
parlamentares que representam o grande agronegócio (em que, em muitos
casos, vigora o trabalho escravo) não quer. Dados do Ministério do
Trabalho revelam que mais de cinco mil pessoas foram resgatadas de
situações de trabalho escravo nos últimos dois anos.
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Exposta
assim, em palavras, a situação em que viviam esses milhares de seres
humanos não parece tão cruel. É preciso que se conheça de perto esta
desgraça para que se tenha noção do quanto ela é chocante: o cidadão,
na busca por um emprego que lhe permita se alimentar e aos seus filhos
ou pais, aceita um trabalho duro e com alta carga horária. Assim, ele
já começa o dia “devendo” ao patrão e não consegue deixar o trabalho
porque não tem jamais condições de pagar a “dívida”, que só aumenta.
Fugir? Impossível! “Jagunços”, “capatazes”, enfim, uma guarda privada e
fortemente armada está sempre pronta para abater aquele que ousar
escapar sem pagar.
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Muitos
desses escravos são crianças ou adolescentes que, na esperança de não
morreram de fome, abandonaram a escola em busca de trabalho. É uma
situação aviltante, chocante! E o pior é que alguns dos que mantêm
seres humanos em regime de escravidão posam publicamente como homens de
bem e “cristãos” devotos. Isso quando não pagam fortunas a agências de
publicidade para promoverem suas empresas que vivem do trabalho
escravo. Como diz a letra da canção de Gilberto Gil, a usura dessa
gente, já virou um aleijão. Gente hipócrita!
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A escravidão é um crime contra a humanidade. O artigo 1o.
da convenção assinada em Genebra ainda em 1926 define a escravidão
como “o estado ou a condição de um indivíduo sobre o qual se exercem os
atributos do direito a propriedade ou alguns deles”. Já segundo a
“convenção suplementar relativa à abolição da escravidão”, adotada
também em Genebra, só que em 1956, estão inclusas entre as instituições
e práticas análogas à escravidão: a servidão por motivos de dívida, o
cativeiro, o casamento forçado (mediante pagamento aos pais, ao tutor
ou qualquer pessoa ou grupo), assim como o trabalho forçado de crianças
e de adolescentes.
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É
possível que as pessoas de bem não se dêem conta hoje do quanto este
crime é doloroso para suas vítimas porque os livros de história, por
meio dos quais elas estudaram e estudam, costumam representar a
escravidão de negros, no passado, como algo indolor. Se a escravidão,
embora abolida oficialmente, cresce debaixo do nosso nariz, é porque o
abolicionista Joaquim Nabuco estava certo quando afirmou ainda no
século XIX que a escravidão permaneceria “por muito tempo como a
característica nacional do Brasil”.
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Como
é que conseguimos conviver com ela ao mesmo tempo em que afirmamos –
em mesas de bar ou durante o intervalo para o café – que temos vergonha
do fato de o Brasil ter sido um país cujo Estado praticou a escravidão
e o tráfico internacional de escravos? Bons sentimentos e intenções
não bastam (o dito popular é feliz em sua afirmação de que, de boas
intenções, o inferno anda cheio)! É preciso mobilização!
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É
chegada a hora de cobrar de nossos parlamentares a aprovação da PEC e
políticas públicas que combatam e previnam a escravidão e/ou as
situações análogas a ela. É chegada a hora de denunciar os casos de
escravidão à imprensa ou aos blogs progressistas. É chegada a hora de
rogar aos nossos deuses que eles façam com que o chicote seja, por fim,
pendurado; e que devolvam a liberdade a quem, para ser livre, foi
criado.
>*Jean
Wyllys é Jornalista e linguista, é deputado federal pelo PSOL-RJ e
integrante da frente parlamentar em defesa dos direitos LGBT.
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Postado no Carta Capital
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